Maria falando sobre passagem significativa de sua infância

Eu tinha onze anos de idade. Meu pai saiu. Disse que não ia demorar, mas demorou. Demorou muito. Uma demora de viagem longa, que ficou bem mais longa porque foi uma viagem sem postais, sem cartas, sem notícia de espécie alguma. Uma viagem que eu, meus irmãos e minha mãe queríamos acreditar que era viagem, mas nem sabíamos ao certo se era viagem mesmo. Viagem no sentido próprio que esta palavra tem. Decidimos – eu decidi – que era viagem e pronto. Minha mãe, por orgulho, dizia que era viagem no sentido “desaparecido”, com direito a retrato dele nas caixas de leite, com aquele triste “visto pela última vez no dia tanto de tanto, vestia assim, assim e assim, favor contatar no telefone tal.” Meus irmãos quase todos achavam que era viagem no sentido de “arrumou as malas e foi embora com outra” ou “arrumou outra e foi embora com as malas” – o que dava exatamente no mesmo.

Certa noite, na hora do jantar, para a surpresa de todos – menos minha – meu pai voltou. Ele entrou sem dizer uma só palavra. Estávamos sentados e, pela expressão de minha mãe, sentados deveríamos ficar. E todos o olharam com medo e raiva. Mais medo que raiva. Muito mais medo que raiva. O silêncio se recusava terminantemente a sair da sala. Até que minha mãe comentou: “Para quem só ia até ali e não demorava, devo dizer que você envelheceu um bocado!”. Meu pai riu. Um riso iluminado. Ele sempre achou minha mãe brilhante. E o comentário dela foi brilhante mesmo. E eu a admirei naquela hora. E fiquei ansiosa esperando a resposta dele. O que ele diria? O que faria? Faria? É lógico que faria. A bola estava com ele. Era a vez dele. Todos ainda o olhavam com medo e raiva. Muito mais medo que raiva. E ele sabia disso. E isso lhe dava mais força e autoridade no erro injustificável. Injustificável? Não, nada é injustificável.

Meu pai andava devagar em torno da mesa. Todos ouvíamos os seus passos no chão de madeira. E eu o amei por ele ter parado ali onde parou. Ele parou atrás de mim. Eu não o via no sentido próprio do verbo ver. Mas o via no sentido da minha alma agradecida a Deus pelo retorno dele. Eu sentia o seu cheiro. E eu podia apostar que ele estava de olhos fechados. E minha mãe me confirmou a certeza: “Essa sua mania irônica de fechar os olhos me embrulha o estômago”. Meu pai era um artista perfeito. E neste momento, ele deu sua primeira fala, com verdade de ator veterano, experiente, que sabe tudo do palco: “A julgar pelos olhares, quem me entende aqui é a Maria”. E então ele pôs as suas mãos sobre os meus ombros. E então eu me senti presenteada. E então todos, inclusive minha mãe, me olharam só com raiva – que ali ninguém tinha medo de mim. Então meu pai repetiu com mais ênfase: “Quem me entende aqui é a Maria. E só a ela responderei, se ela quiser perguntar”.

Sem ter me mexido da cadeira, eu resumi minha saudade: “Você pensou na gente?”. Segurei o choro. Eu não queria chorar. Não queria que a mesa confundisse emoção com fraqueza. E aí, aquele pai imenso das mãos pesadas me tirou da cadeira como se eu fosse uma boneca de pano. Me segurando no ar, colocou o meu rosto bem perto do dele, o meu nariz quase na ponta do nariz dele, e olho no olho, agora no sentido próprio de olhar olho no olho, disse com um amor que inundava a sala e os quartos e a casa e as ruas todas: “Pensei. É lógico que pensei. Pensei muito. O tempo todo”. E aí me beijou o rosto e me colocou em pé na cadeira, sempre voltada para ele. “Você estava viajando?”. Ele fez que sim com a cabeça. “Viagem de conhecer países e pessoas?”. Ele tornou a fazer que sim. “Foi bom?”. “Está sendo, Maria. Está sendo muito bom”. Eu entendi logo onde ele queria chegar. Ou melhor, onde ele queria partir. “Você vai viajar de novo?”. “Eu estou aqui de passagem, Maria”. Aí, eu passei minha mão na sua barba de leve e olhando os meus dedos, eu disse: “Você não pode fazer isso. Você é o Pai de Todos. Você não é o dedo Mindinho, nem Seu Vizinho, nem Fura Bolo, nem Mata Piolho. Você é o Pai de Todos, entende? O Pai de Todos. Eu já não o via. A água nos meus olhos não deixava que eu o visse. Mas ele, com dois dedos feito limpadores de para-brisas, me escorreu a água dos olhos e me fez ver de novo: “Pai de Todos pra você que ainda é menina. Mas na vida, Maria, eu sou apenas o que sou: o dedo médio – este é o nome real do Pai de Todos, o nome adulto: médio, entende?”. “Acho que sim”, eu respondi. Meu pai me olhou de cima a baixo. “Pensando melhor, Maria, você não é mais uma menina. Você é uma mulher. Com apenas onze anos de idade. Já pode perfeitamente tomar conta de uma casa… ou viajar, se preferir.” Então, eu senti a força do meu pai dentro de mim. Ele ali me emancipava, me libertava do conforto de ser apenas filha. Nos demos um forte e demorado abraço.

Depois, meu pai saiu. Da forma como entrou. Em silêncio. A família, órfã, voltou à refeição cotidiana. Seus olhos sempre presos aos pratos e à comida. Mas eu, não sendo órfã, eu tendo pai, mãe e irmãos, preferi viajar a tomar conta de uma casa. Fui para o meu quarto. E com um sentimento de amor e gratidão à vida, comecei a arrumar a minha mala.

Isadora falando sobre a Maria
Maria falando sobre Isadora